domingo, 7 de março de 2021

Alquimia de Domingo




Acordo ainda  sonolenta com o som dos pássaros no quintal. A  dor de cabeça  que deitou comigo ainda está ali, chatinha  incômoda.  Levanto, lavo o rosto,  um mini ritual de skin care:  esfoliar a pele oleosa que pesa o olhar, escovar os dentes.  Prendo o cabelo  num  coque  e lavo o óculos,  com o mesmo  cuidado que acabara de lavar os olhos .Depois deles já  não enxergo mais.

Na cozinha passo um  café, e o cheiro me transporta à  casa de meus avós. O avô a torrar  café  num caco sobre a fogueira e depois a socar no pilão,  que em nada parece com este café  moído,  embalado à  vácuo,  que do modo  antigo só permanece o cheiro.  Sirvo uma torrada  e fatias de queijo de manteiga, pedaços  que  trazem alegria e espantam a  dor de cabeça,  mesmo sabendo que mais tarde doerá a barriga, pois além  da visão  afetada, a idade   também trouxe intolerância à lactose,  mas ainda assim vale o prazer de comer o queijinho fresco de manteiga com café  quente. É como  se voltasse  à  infância,  o avô  no quintal  torrando o café,  a avó no fogão à lenha  mexendo nata  de leite  guardada por dias, num caldeirão  fervendo,   mexida com a colher de pau, sem parar,  raspando bem o fundo da panela, para  não  grudar. A nata ia transformando-se, primeiro espuma, manteiga, e depois de coada, a borra. Uma alquimia que saia da panela,  invadia o olfato , enchia a memória  e arquivou minha infância, ainda presente aqui, perfumada como o café, macia  como o queijo, a trazer a lembrança da manteiga, e da  borra com farinha que a avó  oferecia no final do preparo.

O domingo  parece mais leve ao acordar-se assim inerte, sem pressa alguma, sem preocupação, o pensamento abstraído do mundo.  

Tomo o café a sonhar.  Volto a infância, quando  eu era ainda  terra, areia fina nos pés, os joelhos  ralados a brincar vendo o avô pilar café cantando e minha avó de lenço na cabeça junto ao fogão fazendo manteiga, e por fim  entregar-me o caldeirão  frio para raspar. Um caldeirão  mágico  onde os sabores  da infância  feliz foram depositados misturados à fumaça de café torrado, que vervo agora na xícara e no mastigar,  em silêncio absoluto.


Paula  Belmino

2 comentários:

chica disse...

Linda e doce alquimia.Bom de ler!
Feliz nosso dia! bjs, chica

Toninho disse...

Que lindo amanhecer Paula.
Viajei nas suas lembranças revivi a alquimia,
pilei o café, depois o milho que jogava para as pombinhas no terreiro de café e mamonas.
Vi o pipocar da mamonas ao sol escaldante.
Sorvi do café preto saboroso com um naco de bolo de fubá.
Ah, como daria tudo para voltar no tempo e reviver o ritual.
Obrigado pela viagem ao menino numa roça distante, mas viva no peito.
Um abração amiga e que esta dor não seja uma constante na cabeça.